O amor na forma de uma casa

O corpo pequenino e o olhar envergonhado, que se ergue, por instantes, quando o seu nome é pronunciado, está timidamente pousado no chão. Aos treze anos de vida facilmente se subtraem seis ou sete, tal a candura do seu rosto e a fragilidade do seu corpo. 
- A menina não fala? – pergunta a Senhora.
- Ela é calada. – responde a mãe – Mas, trabalhadora! Não se deixe enganar pelo seu físico, esta rapariga tem canseira.
- E como te chamas, menina calada? – pergunta a Senhora.
- Rosalinda – responde a menina, encarando o rosto da Senhora. Alta, bonita, cabelo negro arranjado. Rosto severo e olhar meigo. “É esta a senhora para quem vou servir”, pensa na tentativa de se acostumar rapidamente com a ideia.
- Estás preparada para ficar aqui? Tarda nada a tua mãe vai ausentar-se e só volta na próxima sexta-feira. – alerta a Senhora.
Rosalinda ergue os olhos, que havia colado novamente no chão, e inspeciona a casa onde irá servir a partir daquele dia. A sala é grande e bem mobilada. Nunca tinha visto sofás tão glamorosos e as cortinas parecem ter o tecido dos vestidos de noiva, que ela já tinha visto nas revistas da costureira lá da terra. Pela janela vê três crianças, rapazes, a jogar à bola no quintal das traseiras. “Talvez sejam os filhos”, pensa. 
- Tenho muito trabalho para ti, Rosalinda! – diz a Senhora – Mas, como prometido à tua mãe, não vais poder descurar os estudos. Vais voltar à escola em breve. – assevera.
- Sim, Senhora! – responde Rosalinda com educação.
Minutos antes, no caminho até àquela casa, a mãe falou, incansável, das regras de educação que ela devia adotar dentro da casa da Senhora.
Também os irmãos mais velhos serviam já noutras casas. Rosalinda sabia que aquele era o seu destino. Talvez a única maneira de fintar a fome e a pobreza certas. Quando a mãe bateu a porta da rua, teve de conter as lágrimas que, por natureza, tão facilmente lhe escavam dos olhos sempre que o assunto era despedida.
A habituação ao serviço foi difícil. Rosalinda era distraída. Tinha a canseira prometida pela mãe, mas, sem intenção, saltava de tarefa em tarefa sem terminar uma que fosse. A Senhora perdoava-a. Rosalinda era a filha que nunca tivera e, tal como se prometera antes de a conhecer, ia educá-la e amá-la como se laços de sangue as unissem. Rosalinda, por seu turno, demorou a perceber a bênção do amor que lhe saíra em sorte.
O corpo pequenino e os olhos levantados observam agora a fachada degradada da casa. Rosalinda completa hoje 68 anos. 55 passaram desde o primeiro dia em que a mãe bateu a porta da casa para voltar só no final da semana. As lágrimas, que não negam a sua natureza, escorrem-lhe pelo rosto enquanto, parada, encara o amor na forma de uma casa.

A morte mostrou-me

As mãos unidas, pousadas suavemente contra o peito. Um passo sempre atrás, atenta, deixavas falar e escutavas. Um sorriso gentil no rosto, que oferecias, vincava cuidadosamente cada uma das tuas rugas. Andavas ligeira, mas firme. Mais para o final da vida, cambaleante, mas sempre segura, ainda que em desequilíbrio. Tudo dizias com o teu silêncio e só gastavas as palavras para agradecer. E não saiam da tua boca em vão. Para ti, nada estava garantido e tudo era uma dádiva. Vivias não para o que desejavas, mas para o que te fora confiado. Sempre temente ao que era superior a ti. Durante muito tempo, desejei que tivesses tido outra vida. Esta que te haviam dado, parecia-me pouco justa e nada digna da tua essência. 
Porque te silenciavas, parecias-me amordaçada. Porque te detinhas um passo atrás, parecias-me relegada para segundo plano. Porque permitias que as rugas se reproduzissem no teu rosto sem vaidade, parecias-me sofredora. Porque sorrias em silêncio e confiavas, parecias-me sem voz e sem liberdade. Porque nada cobiçavas, parecias-me parca em ambição.
Há algum tempo, o Vicente perguntou-me se depois de morrermos voltávamos a ser novamente bebés. Eu sorri. Durante muito tempo desejei que assim fosse. Desejei que voltasses a esta vida para viver o destino mais justo que eu te queria. Muitas vezes, questionei-me se eras feliz. Faltou-me a coragem de to perguntar em vida. 
Foi só quando ele partiu que eu vi. A morte mostrou-me que a tua existência não era nem fora um equívoco. Tudo o que confiaste para ti tinha um nome: AMOR.

Dedicado ao meu avô, que partiu há nove anos. Acredito que o melhor tributo que lhe posso fazer é escrever sobre a mulher que amou e encheu de sentido a sua existência.

A Senhora

Colocou a tablete inteira de chocolate no meio do pão branco e encheu-me as mãos e a alegria. Não, não estava a matar-me a fome. Não. Felizmente! Mas, até então, nunca ninguém me havia oferecido tamanha iguaria. Eu era uma criança gulosa. A Senhora, como me habituaram a tratá-la, apesar do seu nome ser Angelina, era assim: generosa nos atos, generosa no excesso de palavras e generosa na sua frontal sinceridade. Chamava-me lá a casa para fazer limpeza, mas dizia-me, sem pudor, que a minha irmã era muito melhor do que eu a fazê-la. Ela estava certa. O futuro deu-lhe razão. Sempre detestei o trabalho doméstico. Por isso, ela fazia de conta que eu sujava o pano com o pó das cadeiras e aproveitava para conversar sobre as coisas antigas: o marido que já falecera e cujo escritório e arquivo mantinha intactos; os três filhos pequenos; os três filhos que muito estudaram; os três filhos que se tornaram engenheiros e doutores. E os netos, que não eram do antigamente, mas que a recordavam do seu marido, que partiu cedo de mais e que muito se orgulharia se fosse vivo.
Depois da escola, passava lá as tardes sempre que me pedia. Para além do pão recheado com uma tablete de chocolate, ela pagava-me 25 contos. 25 contos para a ouvir falar. Arrependo-me de, na altura, tudo me parecer um grande frete.
A casa da Senhora era antiga, mas denunciava a aristocracia de outros dias. Cuidadosamente mobilada, com o bom gosto da época, tinha um cheiro a guardado. As coisas expostas há tanto tempo e ainda assim cheiravam o odor daquilo que não saía dos armários.
Quando a visitava, tocava à campainha, ela abria a janela do quarto que dava para a rua, espreitava e perguntava “Quem é?”, apesar de estar a olhar diretamente para mim. Só quando a minha voz confirmava o que os olhos dela estavam a ver, atirava a chave da porta da rua. Depois, esperava-me no cimo das escadas com um zangado “Demoraste tanto tempo!” para de seguida me perdoar com um abraço e beijo carinhosos.
Lembro-me de mim pequena, sentada na beira da cama da Senhora, a ouvi-la contar fábulas antigas. Lembro-me de ela me narrar com pormenor a história de cada objeto guardado no sótão. Lembro-me de a ajudar a descer as escadas traseiras, que dão acesso ao jardim e de juntas passearmos entre as ervas daninhas, enquanto ela me contava como fora feliz noutros tempos. De vez em quando, raras vezes, mostrava-me o carro do marido, que estava guardado na garagem. Lembro-me de só nessas alturas pensar que a Senhora devia ser muito rica. O carro era lindo e, na minha cabeça, o seu uso só era possível em filmes de época.
 A Senhora fazia marmelada e colocava-a no parapeito da janela da cozinha, distribuída em pequenas malgas, cobertas com papel vegetal. Lá ficavam até ganharem bolor.  Não havia café mais saboroso que o café que ela fazia. Não sei explicar o porquê, mas sempre achei que o segredo estava na delicadeza da chávena, do pires e da colher. Gostava quando ela me mandava fazer recados ao senhor Fernando da mercearia da esquina, no fundo da rua. “É para meter na conta, senhor Fernando!” O que será do senhor Fernando?
A Senhora escrevia poesia. Numa máquina de escrever. E guardava, religiosamente, todas as folhinhas com textos seus nas gavetas da cómoda do quarto.
Os anos passaram e eu deixei de aparecer lá em casa. Não foi por mal. A vida meteu-se no nosso caminho. Fui para a Universidade. Entretanto a Senhora foi para um lar de idosos e lá partiu. Ainda estava na Universidade quando recebi a notícia da sua morte. Era expectável. Os anos haviam passado. Eu já não era a menina gulosa do um pão branco recheado com uma tablete inteira de chocolate e ela era muito mais velha do que eu me lembrava. Fui ao velório no dia anterior ao seu funeral. As pessoas falavam, acostumadas com a inevitabilidade da morte do que é velho. Mas eu não. Eu não estava acostumada com essa inevitabilidade. Contive o choro, porque ninguém chorava. Lembro-me que ninguém chorava. E eu tinha tanta vontade de chorar. Porque naquele momento eu era a criança gulosa a quem ela enchia as mãos e a alegria.



A última das dignidades

Um saco preto é arremessado pela varanda e faz uma aterragem perfeita junto ao muro do prédio, onde permanece imóvel e vertical, até que alguém o recolha. A última das dignidades é aguardar de pé, até para um saco preto cheio de lixo. 

Com várias bolsas presas entre as pernas, Dona Arminda amarra, à força, o cabelo, enrolando-o e prendendo-o num rabo de cavalo, com a máxima velocidade, não vá uma madeixa fugir, usando a sua mola velha  e debotada, que até então aguardava, pacientemente, entre os seus lábios secos. A Dona Arminda tem o cabelo negro e longo. Nunca vi a Dona Arminda com o cabelo solto. Fecha a porta de casa com delicadeza, não quer importunar os que ficam a descansar, e imprime um andar apressado, o andar de quem segue atrasado para compromissos. Já à frente da varanda do seu apartamento, recolhe o saco preto vertical, que deixa de ficar imóvel, tal é a inquietação de conhecer o seu destino.Dona Arminda segue de fato de treino, roupa de trabalho ou de faxina, não de desporto. Dona Arminda não faz desporto. Não tem tempo. Para trás deixa uma casa perfeitamente organizada. Roupa estendida, ainda o sol mal espreitava no horizonte, a cama feita e a loiça do pequeno-almoço lavada. São 8 horas da manhã e a Dona Arminda já atirou o saco de lixo pela varanda. Fá-lo todos os dias e todos os dias o saco aterra vertical. Dona Arminda respeita o saco preto de lixo. Sinto-o no modo como o atira pela sua varanda do rés do chão. Fá-lo sempre com cuidado e com a certeza de que cai de pé. “Até um saco de lixo deve ser respeitado.”, pensa. Irrita-a o modo como os vizinhos depositam os seus sacos pretos na casa do lixo. Tudo amontoado, tudo desmaiado, tudo triste, tudo sem esperança. Quando abro a portinhola da casa do lixo e observo o amontoado que lá permanece, consigo identificar, com certeza, o saco preto de lixo que a Dona Arminda lá deixou logo de manhazinha. Está encostado no lado esquerdo, a um canto, numa posição vertical perfeita.

Nem dá jeito colocá-lo assim. É necessário escancarar a portinhola, entrar na casa do lixo, esticar os braços e vergar o dorso, para garantir que o saco preto é depositado de forma tão perfeitamente vertical. Todos os vizinhos abrem uma nesga da portinhola e, se possível, sem encarar a ausência de dignidade dos restantes sacos de lixo, atiram o seu saco para o lado direito. O saco cai, atabalhoado, em cima de outro qualquer que já lá está há um par de horas. Dona Arminda abana a cabeça e vocifera qualquer coisa que não se percebe, sempre que, por acidente, testemunha um episódio destes.

Ao longo dos anos, foi desenvolvendo uma amizade com os seus sacos de lixo. Afinal, há anos, só ela abandona o lar, impreterivelmente às 8h e pouco da manhã, recolhe o saco que lançou pela varanda e juntos seguem, durante proveitosas cinquenta passadas, até à casa do lixo. E falam.
Dona Arminda fala com o saco de lixo. É a sua companhia logo pela manhã. No lar, a descansar, ficam os que não lhe fazem companhia a essa hora da matina. Então, ela conversa com o saco de lixo. 
Podia ser o marido a levar o saco de lixo, mas o fato que usa para trabalhar no banco podia sujar-se. Podia ser o filho, mas o filho é médico. “Os médicos não carregam sacos de lixo, ora não?”, questiona-se. Podia ser a filha, mas a filha anda na universidade. Não pode ser a filha universitária, não fica bem. Então é a Dona Arminda. E a Dona Arminda pensa que até um saco de lixo deve ser respeitado. Por isso, o quer vertical na sua última moradia.

A Mulher sem paciência e a Espera

Não, a paciência não lhe servia. Experimentou vários tamanhos, antes de entrar em casa, mas nenhum lhe passou na cabeça. Teria talvez um perímetro cefálico muito grande para a paciência. Por isso, entrou nua. Exatamente como veio ao mundo, sem paciência. Não sabia de quantos dias se serviria a Espera, mas sabia que só a paciência, esse fato à prova de fraquezas, a protegeria dos males de quem aguarda sem data. 

Entrou em casa sem nada e começou a bulir. Percorreu, sem cansaço, todos os compartimentos, abriu e fechou armários, reuniu e livrou-se do que já estava gasto, organizou o que ainda tinha vida e descansou. Logo, logo a Espera se ausentaria, pensou. Mas, a Espera tinha tempo e deixou-se ficar. Sentou-se no sofá e começou a falar. Primeiro, ela ignorou-a. Continuou a abrir e a fechar armários, a correr os compartimentos e a desorganizar o que já estava organizado, só para não ter de se sentar junto dela. Nada apoquentava a Espera, ela sabia esperar, ria-se. “Senta-te ao meu lado!”, dizia à mulher em paciência. 
E a mulher sem paciência respondia que não podia, que outras coisas urgia fazer. Já nada havia que carecesse de trabalhos, mas, sem paciência, a mulher, ocupava-se do nada. Tudo menos ficar sentada, no sofá, com a Espera. A Espera ainda assim falava. Falava alto para que a mulher a ouvisse. E a mulher fazia-se ruído. Ligava a TV, a máquina de lavar roupa, a máquina de lavar louça e cantava. Talvez o barulho ensurdecedor, que agora a casa produzia, a impedisse de ouvir o que a Espera palrava, sentada confortavelmente no sofá. “Não há meio de (ex)terminar a Espera!”, pensava a mulher sem paciência. Ela nunca tivera desejo de matar o que fosse, mas a Espera tirava-a do sério. Não gostava da sua companhia. Sempre que, por força das circunstâncias, tinha de se cruzar com ela, numa fila de trânsito, no posto médico ou na mercearia, a Espera consumia os pensamentos da mulher. “Não é boa companhia!”, pensava. Agora, em casa e sem data marcada para a visita se ir embora, a mulher obrigava-se a esta inoportuna convivência. A Espera sorria, a sonsa. Era um teste à paciência que não lhe passava na cabeça.

Certo dia, mais cheia do nada do que da Espera, a mulher sem paciência rendeu-se e sentou-se no sofá. A Espera fez-lhe companhia. Falava-lhe, num monólogo pausado, característico de quem tem tempo, sobre a vida, sobre o passado, sobre o futuro e perguntava â mulher sem paciência: “O que pensas sobre isto?”. A Mulher rosnava como um bicho e não respondia. Por vezes, adormecia. Preferia dormir a pensar. Mas, a Espera obrigava-a, ponto de interrogação atrás de ponto de interrogação, a pensar. A antecipar cenários, a desenhar hipóteses, a ver-se mais à frente, quando, por fim, a Espera se ausentaria. De tanto dormir, a mulher ficou sem sono. De tanto rosnar, a mulher ficou sem raiva. De tanto se emudecer, a mulher falou. Falou com a Espera, as duas sentadas no sofá, enquanto tricotava palavras. E, à medida que falavam sobre tudo o que era da vida, a mulher foi costurando a sua própria paciência, uma paciência que lhe passava no perímetro cefálico e vestiu-a. Sem medo da companhia, a mulher serviu chá à Espera e as duas aguardaram.

Preciso de partir

Tantas vezes deixarei de morrer, para que não partas.