Um saco preto é arremessado pela varanda e faz uma aterragem perfeita junto ao muro do prédio, onde permanece imóvel e vertical, até que alguém o recolha. A última das dignidades é aguardar de pé, até para um saco preto cheio de lixo.
Com várias bolsas presas entre as pernas, Dona Arminda amarra, à força, o cabelo, enrolando-o e prendendo-o num rabo de cavalo, com a máxima velocidade, não vá uma madeixa fugir, usando a sua mola velha e debotada, que até então aguardava, pacientemente, entre os seus lábios secos. A Dona Arminda tem o cabelo negro e longo. Nunca vi a Dona Arminda com o cabelo solto. Fecha a porta de casa com delicadeza, não quer importunar os que ficam a descansar, e imprime um andar apressado, o andar de quem segue atrasado para compromissos. Já à frente da varanda do seu apartamento, recolhe o saco preto vertical, que deixa de ficar imóvel, tal é a inquietação de conhecer o seu destino.Dona Arminda segue de fato de treino, roupa de trabalho ou de faxina, não de desporto. Dona Arminda não faz desporto. Não tem tempo. Para trás deixa uma casa perfeitamente organizada. Roupa estendida, ainda o sol mal espreitava no horizonte, a cama feita e a loiça do pequeno-almoço lavada. São 8 horas da manhã e a Dona Arminda já atirou o saco de lixo pela varanda. Fá-lo todos os dias e todos os dias o saco aterra vertical. Dona Arminda respeita o saco preto de lixo. Sinto-o no modo como o atira pela sua varanda do rés do chão. Fá-lo sempre com cuidado e com a certeza de que cai de pé. “Até um saco de lixo deve ser respeitado.”, pensa. Irrita-a o modo como os vizinhos depositam os seus sacos pretos na casa do lixo. Tudo amontoado, tudo desmaiado, tudo triste, tudo sem esperança. Quando abro a portinhola da casa do lixo e observo o amontoado que lá permanece, consigo identificar, com certeza, o saco preto de lixo que a Dona Arminda lá deixou logo de manhazinha. Está encostado no lado esquerdo, a um canto, numa posição vertical perfeita.
Nem dá jeito colocá-lo assim. É necessário escancarar a portinhola, entrar na casa do lixo, esticar os braços e vergar o dorso, para garantir que o saco preto é depositado de forma tão perfeitamente vertical. Todos os vizinhos abrem uma nesga da portinhola e, se possível, sem encarar a ausência de dignidade dos restantes sacos de lixo, atiram o seu saco para o lado direito. O saco cai, atabalhoado, em cima de outro qualquer que já lá está há um par de horas. Dona Arminda abana a cabeça e vocifera qualquer coisa que não se percebe, sempre que, por acidente, testemunha um episódio destes.