Como grande parte da nossa sociedade, porque inserida numa cultura judaico-cristã, fui educada a não julgar o próximo. Mais, fui ensinada que julgar é mau e faz de mim uma pessoa mais próxima do Mal do que do Bem. Por isso, quando o faço - e faço-o muitas vezes, porque decido - sinto-me uma pessoa sem escrúpulos, o que me leva a refletir: por que me mói tanto o ato de julgar e por que razão não consigo evitá-lo?
Ajuizamos a toda a hora. Viver é uma catadupa de julgamentos. Avaliamos coisas, eventos e pessoas. Fazemo-lo por uma questão de sobrevivência estratégica. Quando julgamos, estamos a agir, por intuição ou deliberadamente, de modo a garantir a nossa continuidade e a dos nossos, nas condições mais favoráveis, dentro de um quadro de valores que defendemos e adotamos. Bons e maus juízos permitiram à Humanidade chegar ao momento em que vivemos. Um julgamento não acontece no vazio, sucede a algo. Em última análise, temos gravado no nosso ADN as aprendizagens de um sem número de julgamentos, feitos pelos nossos antepassados - uma espécie de memória RAM - que nos ajudam a assegurar a continuidade da espécie, julgando o melhor possível cada ato nosso e dos outros.
A propósito do ato de julgar, ouvimos, com frequência, o seguinte raciocínio: o que vês no outro é o teu
reflexo. Portanto, se vejo maldade no outro, sou
má. Se vejo bondade, sou boa. E por aí a fora…
Ultimamente, tenho refletido sobre esta argumentação (que não é menos que um juízo), que surge, quase sempre, quando o julgamento é negativo e a parte julgada se sente ofendida. Assumir o outro como nosso espelho é desresponsabilizá-lo, é destituí-lo da sua capacidade de agir de livre arbítrio. Pior, de acordo com esta premissa, o outro só existe porque eu existo; e eu não existo sem o outro, porque não há existência possível se não houver outro onde nos projetarmos.
Pergunto-me, perdemos a nossa essência, a nossa unicidade, se o nosso semelhante não estiver por perto, para nos vermos ao espelho? Não creio… e basta enumerar uma série de personalidades que passaram pela clausura e isolamento e que não se perderam de si, durante esse período…
Até posso aceitar que, pontualmente, exista alguma
ambiguidade no nosso julgamento, sobretudo quando estamos desequilibrados ou feridos emocionalmente, mas não creio que seja a norma nem que essa
ambiguidade seja obrigatoriamente o reflexo daquilo que somos. Como disse, um
julgamento sucede a algo. Um comportamento, uma conversa, uma intenção espoletam julgamentos. Muitas vezes, remetem-nos para eventos passados, com
características idênticas, que podem resultar em consequências similares. Julgamos para mudar ou para manter.
O que eu vejo no outro, pode muito bem ser o que ele é. O que eu vejo no outro, pode não ter nada a ver com o que eu sou.
Ter a capacidade de julgar é ter a capacidade de fazer caminho. E, enquanto avançamos, com a certeza do que queremos, ajuizaremos sobre tudo o que encontrarmos na jornada, sempre com o intuito de não nos perdermos da nossa missão.
Julgar com escrúpulos é útil para sermos o menos injustos possível. E talvez por isso não ceda em abandonar esta espécie de indecisão, que persiste no espírito, mesmo quando tudo indica que fiz um bom julgamento. Mais a mais, dá-me alguma tranquilidade saber que não temo ser julgada na mesma medida.