A Senhora

Colocou a tablete inteira de chocolate no meio do pão branco e encheu-me as mãos e a alegria. Não, não estava a matar-me a fome. Não. Felizmente! Mas, até então, nunca ninguém me havia oferecido tamanha iguaria. Eu era uma criança gulosa. A Senhora, como me habituaram a tratá-la, apesar do seu nome ser Angelina, era assim: generosa nos atos, generosa no excesso de palavras e generosa na sua frontal sinceridade. Chamava-me lá a casa para fazer limpeza, mas dizia-me, sem pudor, que a minha irmã era muito melhor do que eu a fazê-la. Ela estava certa. O futuro deu-lhe razão. Sempre detestei o trabalho doméstico. Por isso, ela fazia de conta que eu sujava o pano com o pó das cadeiras e aproveitava para conversar sobre as coisas antigas: o marido que já falecera e cujo escritório e arquivo mantinha intactos; os três filhos pequenos; os três filhos que muito estudaram; os três filhos que se tornaram engenheiros e doutores. E os netos, que não eram do antigamente, mas que a recordavam do seu marido, que partiu cedo de mais e que muito se orgulharia se fosse vivo.
Depois da escola, passava lá as tardes sempre que me pedia. Para além do pão recheado com uma tablete de chocolate, ela pagava-me 25 contos. 25 contos para a ouvir falar. Arrependo-me de, na altura, tudo me parecer um grande frete.
A casa da Senhora era antiga, mas denunciava a aristocracia de outros dias. Cuidadosamente mobilada, com o bom gosto da época, tinha um cheiro a guardado. As coisas expostas há tanto tempo e ainda assim cheiravam o odor daquilo que não saía dos armários.
Quando a visitava, tocava à campainha, ela abria a janela do quarto que dava para a rua, espreitava e perguntava “Quem é?”, apesar de estar a olhar diretamente para mim. Só quando a minha voz confirmava o que os olhos dela estavam a ver, atirava a chave da porta da rua. Depois, esperava-me no cimo das escadas com um zangado “Demoraste tanto tempo!” para de seguida me perdoar com um abraço e beijo carinhosos.
Lembro-me de mim pequena, sentada na beira da cama da Senhora, a ouvi-la contar fábulas antigas. Lembro-me de ela me narrar com pormenor a história de cada objeto guardado no sótão. Lembro-me de a ajudar a descer as escadas traseiras, que dão acesso ao jardim e de juntas passearmos entre as ervas daninhas, enquanto ela me contava como fora feliz noutros tempos. De vez em quando, raras vezes, mostrava-me o carro do marido, que estava guardado na garagem. Lembro-me de só nessas alturas pensar que a Senhora devia ser muito rica. O carro era lindo e, na minha cabeça, o seu uso só era possível em filmes de época.
 A Senhora fazia marmelada e colocava-a no parapeito da janela da cozinha, distribuída em pequenas malgas, cobertas com papel vegetal. Lá ficavam até ganharem bolor.  Não havia café mais saboroso que o café que ela fazia. Não sei explicar o porquê, mas sempre achei que o segredo estava na delicadeza da chávena, do pires e da colher. Gostava quando ela me mandava fazer recados ao senhor Fernando da mercearia da esquina, no fundo da rua. “É para meter na conta, senhor Fernando!” O que será do senhor Fernando?
A Senhora escrevia poesia. Numa máquina de escrever. E guardava, religiosamente, todas as folhinhas com textos seus nas gavetas da cómoda do quarto.
Os anos passaram e eu deixei de aparecer lá em casa. Não foi por mal. A vida meteu-se no nosso caminho. Fui para a Universidade. Entretanto a Senhora foi para um lar de idosos e lá partiu. Ainda estava na Universidade quando recebi a notícia da sua morte. Era expectável. Os anos haviam passado. Eu já não era a menina gulosa do um pão branco recheado com uma tablete inteira de chocolate e ela era muito mais velha do que eu me lembrava. Fui ao velório no dia anterior ao seu funeral. As pessoas falavam, acostumadas com a inevitabilidade da morte do que é velho. Mas eu não. Eu não estava acostumada com essa inevitabilidade. Contive o choro, porque ninguém chorava. Lembro-me que ninguém chorava. E eu tinha tanta vontade de chorar. Porque naquele momento eu era a criança gulosa a quem ela enchia as mãos e a alegria.



Preciso de partir

Tantas vezes deixarei de morrer, para que não partas.