Luta

Escrever-me
Todos os dias
Apagar-me.

Nascer
Num bico de carvão
Morrer.

De fácil leitura
Ser
De complexa compreensão.

As palavras mais finas
Ditar
O mais belo calão.

Ser escrita
Não
Escrever-me.

Obviamente

És tu.

Perspetiva

O céu clareou,
mas, da minha varanda, o sol ainda dorme.

Tudo aponta o novo dia:
Os pássaros cantam
Os cães ladram
O barulho dos motores dos carros intensifica, ao longe
Ouve-se o ranger dos estores a abrir, nos prédios
O primeiro comboio da manhã já passou.

Agora mesmo, um dono chama o seu gato.

Na linha do horizonte, desenha-se um fio vermelho e, da minha varanda, o sol ainda dorme e eu continuo noite.

Talvez seja esse o meu problema, com os novos dias e com tudo o resto na vida:
o ponto de vista
e a teimosia de achar que o dia só o é com o sol a queimar-me os olhos.



Sentir é a única contradição

O que vão fazer de mim?
O caminho é íngreme e lamacento
E não há mãos onde possar dar as minhas.

O que vão fazer de mim?
Eu não vejo os meus pés afundar-se no lodo
E na beira não há eira onde me descalçar do chão.

O que vão fazer de mim?
Já pedi para esperar, sentada de costas para a estrada.
A emudecer um "Não vou!"

Vejo-me, ainda assim, a desfazer o caminho
Com os punhos cerrados erguidos em direção ao centro da terra,
a gritar-me ao contrário, 
a desenterrar os pés da carne viva
De frente para um sol que queima

A ir

O que vou fazer de mim?

Outra terra onde esperar

É preciso forçar as raízes contra a cerâmica
Rachar as paredes dos vasos minúsculos
Transladar as expectativas para terra selvagem

É preciso quebrarmo-nos contra a parede
Procurar outro solo maior
Navegar linhas de água ocultas

Sair dos vasos onde nos detemos
Mas não com cuidados maiores
Esvaziá-los contra o cimento pintado

Sujar a parede
Sujar o chão
Empoeirar o ar

É preciso saber que não somos esses mil cacos
Mas sim as raízes despojadas no chão
E que há mais terra, 

Outra terra onde esperar.

Meteorologia de um corpo zangado

Na boca, um céu fechado
Na cabeça, uma nuvem carregada,
Que se precipita pelos olhos
Ao longe, ouve-se a trovoada no coração
muito depois dos relâmpagos que rasgam os lábios
O sangue galga os poros, 
mil caudais excedentes na pele
Das narinas, rajadas de vento
Levantam as mãos e os braços, descontrolados.

Estar como o tempo exige meteorologia.


Fio enrolado no dedo

No meu dedo enrolaste um fio vermelho,
Como fazem os antigos, para a memória não falhar,
E no coração colocaste-me uma roca, para nos fiar lentamente

Não te preocupes, não esquecerei:
Tecerei contigo os dias
Os anos
A vida
Com a paciência das mãos, que não esquecem, com um fio enrolado no dedo.

Palavras feitas

Queria desenrolar-me e enrolar-te
Fita vazia 
História desgravada
Não gastar as palavras com a boca 
Esgotá-las no corpo sem um discurso

Fazer palavras sem as dizer.
O concreto no Amor.


Corpo

Não vandalizes a minha pele
Com o esboço de uma intenção

Nem seles os meus olhos
Com o visco de um beijo imprudente

A minha boca não fartes
Com a saliva de uma fonte seca

Porque do corpo não se apagam rascunhos
Os olhos nunca mais enxergam após um beijo
E a boca jamais saboreará outra vontade que não a da morte

Mapa

Sou um terreno minado
Uma implosão iminente
Caminho-me, desarmada,
entre hemisférios,
na expectativa de uma passada, 
que me congele as pernas.
O coração a pisar o artefacto explosivo,
Uma voz interior que me grite: 
Para!

E, de cá dentro, eu vejo-te, paciente,
A desenhar o mapa que sou:
"As tuas minas estão aqui
E é assim que as desativas" 

Tempo

Sabes, não desejo ser
o certo no tempo errado
nem erro no tempo acertado

Devo ser a verdade no seu tempo.

Contar os sóis

O sol também nasce para quem se põe à janela.
Cotovelos pousados, 
Onde não pára o peito.
Olhos esbugalhados como faróis,
colados num horizonte, cheio de mar.
À espera que o sol se ponha
para cessar. 
Outro dia que chegue,
o mesmo sol para levantar.

Consensos não existem em Democracia


Nota prévia: 
A motivação para a reflexão tem a ver com a justificação política, apresentada persistentemente pelos nossos governantes, para validar todas as decisões tomadas, a propósito da pandemia que vivemos: o CONSENSO. Quando uma medida menos popular reflete na sociedade um reação mais quente, António Costa, ou outro representante do governo, usa o trunfo da consensualidade parlamentar, na tomada de decisão, para "calar" a reação.

Ora bem...

Tanto num regime democrático, como na vida em geral, acredito em cedências vigilantes e não em consensos, no ato de decidir. 
A validade de uma decisão não pode ser medida pela consensualidade que envolveu, no grupo que a decidiu. Até porque não há regime político mais consensual do que uma ditadura e isso não a torna legítima.
Em plena pandemia, todas as decisões políticas têm sido justificadas ou alicerçadas num assentimento parlamentar perigoso, que parece adormecer quem ajudou a decidir. Porquê? Porque, ao encontrar deferimento nos diferentes deputados, as medidas deliberadas parecem afastar vigilantes. Toda a decisão tomada deve ser vigiada criticamente e de perto. Todas as medidas implicam vigílias. 
Comparemos o ato de decidir/vigiar ao ato de selecionar no GPS um destino, para o qual nos queremos deslocar, quando não estamos certos do melhor caminho a tomar. Durante a viagem, não nos limitamos a fazer o que o GPS indica. Observamos, atentamente, o que dizem as placas na estrada, se o caminho indicado for um caminho de cabras, hesitamos, voltamos atrás. Em última instância, se tivermos um pressentimento de que estamos perdidos, paramos o carro, baixamos o vidro e pedimos orientações a um local. O GPS é, consensualmente, uma ferramenta muito fiável, mas, ainda assim, não tem a nossa confiança cega. Decidir e vigiar é muito isto. Decidimos e, mesmo com o conforto de uma aceitação generalizada em relação à decisão tomada, continuamos a vigiar, porque sabemos que o consenso não valida a decisão. O consenso, que, na minha opinião, é mais cedência, confere poder para agir, para avançar. Mas, não devia conferir poder para calar quem se opõe. E eu sinto que estamos a ser amordaçados por um consenso, que facilita o trabalho do Governo, mas que serve a poucos. 

Tempo

A que saberão estes frutos
Que colhemos ao tempo, sem tempo,
Debaixo de um lento céu, excedente em nuvens chorosas,
Sem agasalho na alma
Sem as mãos calejadas
E com o coração faminto.

Escrúpulos

Como grande parte da nossa sociedade, porque inserida numa cultura judaico-cristã, fui educada a não julgar o próximo. Mais, fui ensinada que julgar é mau e faz de mim uma pessoa mais próxima do Mal do que do Bem. Por isso, quando o faço - e faço-o muitas vezes, porque decido - sinto-me uma pessoa sem escrúpulos, o que me leva a refletir: por que me mói tanto o ato de julgar e por que razão não consigo evitá-lo?

Ajuizamos a toda a hora. Viver é uma catadupa de julgamentos. Avaliamos coisas, eventos e pessoas. Fazemo-lo por uma questão de sobrevivência estratégica. Quando julgamos, estamos a agir, por intuição ou deliberadamente, de modo a garantir a nossa continuidade e a dos nossos, nas condições mais favoráveis, dentro de um quadro de valores que defendemos e adotamos. Bons e maus juízos permitiram à Humanidade chegar ao momento em que vivemos. Um julgamento não acontece no vazio, sucede a algo. Em última análise, temos gravado no nosso ADN as aprendizagens de um sem número de julgamentos, feitos pelos nossos antepassados - uma espécie de memória RAM - que nos ajudam a assegurar a continuidade da espécie, julgando o melhor possível cada ato nosso e dos outros. 

A propósito do ato de julgar, ouvimos, com frequência, o seguinte raciocínio: o que vês no outro é o teu reflexo. Portanto, se vejo maldade no outro, sou má. Se vejo bondade, sou boa. E por aí a fora…

Ultimamente, tenho refletido sobre esta argumentação (que não é menos que um juízo), que surge, quase sempre, quando o julgamento é negativo e a parte julgada se sente ofendida. Assumir o outro como nosso espelho é desresponsabilizá-lo, é destituí-lo da sua capacidade de agir de livre arbítrio. Pior, de acordo com esta premissa, o outro só existe porque eu existo; e eu não existo sem o outro, porque não há existência possível se não houver outro onde nos projetarmos.

Pergunto-me, perdemos a nossa essência, a nossa unicidade, se o nosso semelhante não estiver por perto, para nos vermos ao espelho? Não creio… e basta enumerar uma série de personalidades que passaram pela clausura e isolamento e que não se perderam de si, durante esse período…

Até posso aceitar que, pontualmente, exista alguma ambiguidade no nosso julgamento, sobretudo quando estamos desequilibrados ou feridos emocionalmente, mas não creio que seja a norma nem que essa ambiguidade seja obrigatoriamente o reflexo daquilo que somos. Como disse, um julgamento sucede a algo. Um comportamento, uma conversa, uma intenção espoletam julgamentos. Muitas vezes, remetem-nos para eventos passados, com características idênticas, que podem resultar em consequências similares. Julgamos para mudar ou para manter. 

O que eu vejo no outro, pode muito bem ser o que ele é. O que eu vejo no outro, pode não ter nada a ver com o que eu sou. 

Ter a capacidade de julgar é ter a capacidade de fazer caminho. E, enquanto avançamos, com a certeza do que queremos, ajuizaremos sobre tudo o que encontrarmos na jornada, sempre com o intuito de não nos perdermos da nossa missão.

Julgar com escrúpulos é útil para sermos o menos injustos possível. E talvez por isso não ceda em abandonar esta espécie de indecisão, que persiste no espírito, mesmo quando tudo indica que fiz um bom julgamento. Mais a mais, dá-me alguma tranquilidade saber que não temo ser julgada na mesma medida.

Poema de Amor

Amor,
As flores dos meus canteiros desertaram.
Arrancaram-se pelas raízes e partiram.

Fugiram para a ponta do meu lápis de carvão
e enterraram-se no papel dos meus cadernos.

Somente porque desejavam 
ser os poemas que te dediquei.

E agora a minha poesia é um jardim
Onde passeamos, todos os dias.

Aparato no peito

Este exagero absurdo em que transformo a mágoa, percebo que te seja perfeitamente inútil. Na verdade, se eu pudesse ser só ser um ato de razão, também tornaria inutilidade tudo o que sinto. Não há saldo positivo quando se carrega este aparato no peito horas a fio. 

Não me assombram os teus mil afazeres.

Nem que o tempo te passe entre os dedos sem dares conta.

Incomoda-me que não tenhas, como eu, um aparato no peito.

Visitante

A noite já caiu há muito
E as nuvens bloqueiam a luz da lua e das estrelas

A mesa está posta, flores murchas numa jarra sem água
Duas cadeiras, uma vazia

Há silêncios para pôr em dia
Onde em tempos conversas te esperaram

A porta está fechada
E até as janelas se incomodam com a luz do sol, quando há dia lá fora

Talvez não valha a pena aguardar

Tenho tantas coisas para te mostrar
Mas, agora tudo me parece velharia, gasta pelo tempo e pela ausência

Talvez se eu abrisse a porta
E juntasse cadeiras à mesa
Quem sabe o silêncio desse lugar à prosa
E as portadas rasgassem fissuras para a aurora entrar.

Esperança

Eu era uma pessoa otimista
Encarava a vida com uma esperança pueril
E ria na cara do desalinho
Fintava os contratempos 
E fazia o queria

2020 chegou e destruiu
E algo cá dentro ficou irremediavelmente desarranjado

E eu tento corresponder a essa exigência de esperar o melhor, mesmo no meio dos destroços em que me transformei,
E arregaço a força de vontade até ao coração,
Mas, por mais que tente focar a visão, 
Não sei o que esperar

Como posso ter esperança
Sem saber o que esperar?

Desejos

Em tantas noites 

também eu me sentei debaixo de um negro céu

à espera que as estrelas caíssem no meu colo

e queimassem as pontas dos meus dedos, que insistem em carregar com todo o cuidado

este coração 

cadente

Desejo que nada o impeça de cair contra o chão.

Se te fores embora

Parte como chega o verão:

numa madrugada aleatória de junho,

despertados pelo suor que nos escorre pelo pescoço,

percebemos o cobertor a mais na cama.

Que assim seja o nosso desamor,

um problema de transpiração.

Pois o inverno estará perto, ao virar de duas estações, se te fores embora como o verão chega.

E o cobertor voltará à cama.



Passado

Ainda assim, talvez tivesse valido a pena ver-te arrancar-me a pele. Dois casulos lado a lado. 

Duas borboletas a acontecer.

Café do Parque

Ali, os beijos são nascente. 
E sou a água.
E tu és terra.

As primeiras monções
nós.
Sempre. Em cada regresso.

Vaga clarividência

Ver-te
É limpar o horizonte,
Que se faz aurora a cada volta
É caminhar inequívoca,
Com um olhar claro
É ir contigo,
Fazer estrada sem onde
É ter a fé do bom ladrão

Preciso de partir

Tantas vezes deixarei de morrer, para que não partas.